Os dois primeiros dias de julgamento da trama golpista no Supremo Tribunal Federal (STF) mostraram uma disparidade nas estratégias de defesa dos réus com alguns esforços individuais para distanciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A avaliação é de especialistas ouvidos pelo Terra, que apontam uma ruptura do chamado “espírito de corpo” em meio às sustentações orais.

A defesa de Augusto Heleno, general que comandou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) — órgão responsável pela segurança pessoal do ex-presidente –, adotou, por exemplo, postura distante em relação a Bolsonaro. O advogado Matheus Milanez buscou dissociar o cliente de quaisquer atos considerados antidemocráticos pelos ministros da Primeira Turma do STF. A estratégia dele foi dizer que Heleno teria percebido a gestação de um ataque à democracia, mas que não participou dele.

Para isso, Milanez apresentou aos ministros recortes de reportagens que tratavam do esfriamento na relação entre Heleno e Bolsonaro. Segundo o advogado, o afastamento entre os dois deveu-se principalmente à aproximação do ex-presidente com o Centrão. “O general Heleno foi uma figura política importante, tanto para a eleição quanto para o governo. Mas este afastamento é comprovado. Este afastamento da cúpula decisória. E por mais que o Ministério Público fale: ‘Ah, mas o afastamento não foi completo’. Mas é óbvio, se fosse completo, ele teria saído do governo”, argumentou.

Na foto, da esquerda para direita: Jair Alves Pereira, advogado ne Mauro Cid; Matheus Milanez, advogado de Augusto Heleno; Paulo Renato Garcia Cintra, advogado de Alexandre Ramagem; Demóstenes Torres, advogado de Almir Garnier; Celso Sanchez Vilardi, advogado de Bolsonaro; José Luis de Oliveira Lima, advogado de Braga Netto; Eumar Roberto Novacki, advogado de Anderson Torres; e Andrew Fernandes Farias, advogado de Paulo Sérgio Nogueira. Foto: Gustavo Moreno-STF/ Rosinei Coutinho (Foto: TF / Reprodução – TV Justiça)

A defesa do general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, também mostrou uma tentativa de distanciar-se do ex-mandatário. Seu advogado afirmou categoricamente que o cliente tentava “demover” Bolsonaro de alguma iniciativa. Questionada pela ministra Cármen Lúcia sobre o significado do termo, a defesa esclareceu que se tratava de demovê-lo de tomar medidas de “exceção”.

O professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Emilio Peluso Meyer disse ao Terra que as estratégias das defesas apontam uma ruptura no que se esperaria de um “espírito de corpo” que tradicionalmente caracteriza as Forças Armadas.

“Esse tipo de posição destoa muito do certo espírito de corpo que a gente sempre observa em relação às Forças Armadas”, observa Meyer. “Aqui parecia que logo quando as acusações começaram a acontecer, esse seria um caminho a ser seguido novamente.”

Na vida militar, o chamado “espírito de corpo” é considerado um dos valores fundamentais da instituição. Ele é definido como a união, a lealdade e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo, promovendo a coesão e o apoio mútuo. Esse princípio transforma o indivíduo em parte de um coletivo unido por um propósito e missão comuns.

Para o especialista, as alegações finais deixam clara a fragmentação das estratégias, onde cada defesa busca individualmente evitar ou atenuar a condenação de seu cliente. “E o que a gente pode perceber agora é que, provavelmente, a posição do Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos e a sua clara tentativa de dissociar apenas seu pai da responsabilização em relação aos atos acaba dando uma série de indicativos no sentido de que, ‘olha, talvez seria importante que esses agentes agora da alta patente das Forças Armadas tentem evitar a sua própria responsabilização’, já que, da parte do ex-presidente, talvez não houvesse nenhum tipo de solidariedade nesse sentido.”

Busca por atenuar a pena
A professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito Rio, Maíra Fernandes, avalia que é comum a defesa pedir a absolvição e, alternativamente, tentar atenuar a pena se o acusado for condenado. “No caso do julgamento vê-se exatamente essa tentativa de atenuar as penas, por exemplo, quando a defesa afirma que não cabe, simultaneamente, crime de golpe de estado e atentado violento contra estado democrático de direito”, afirma.

Já Meyer identifica que o núcleo da estratégia de defesa, evidenciado nas sustentações orais, não é mais construir uma narrativa coesa, mas sim individualizar as responsabilidades. “A gente já tem uma série de indicativos que a condenação virá”, analisa o professor. “Então agora é hora de mostrar que ou não há responsabilidade ou de que é possível uma atenuação de penas.”

Para o professor, o tom das defesas demonstra uma consciência da robustez das provas e uma expectativa de condenação por parte do STF. O objetivo, portanto, deixou de ser uma absolvição geral e passou a ser a” busca por penas menores ou a tentativa de exclusão do núcleo principal da trama. “Talvez o ponto mais importante até agora é justamente no sentido de que não há mais uma coesão, de que todos ali estão unidos no propósito de evitar uma responsabilização”, aponta o constitucionalista, que afirma que essa postura das defesas pode ter relevo na dosimetria das penas. 

Tentativa de “descolar” de Bolsonaro
Essa consciência da robustez das provas por parte dos réus também é destacada pelo coordenador do curso de Direito da ESPM, Marcelo Crespo. Ele afirma que o cenário mostra uma percepção clara por parte dos acusados de que a condenação é inevitável. O professor também vê a estratégia de distanciamento de Bolsonaro como uma tentativa de atenuar as penas ou, em um cenário mais ambicioso, buscar a absolvição.

“Isso está acontecendo por um motivo muito simples. Tanto o Heleno quanto o Paulo Sérgio Nogueira perceberam que a condenação vem. Estão cientes disso. Então essa é uma estratégia para tentar, de alguma forma, se descolar mesmo do Bolsonaro”, analisa.

Crespo explica que esse “descolamento” pode operar em dois níveis. “Num primeiro grau, é tentar ter uma pena menor do que a do próprio Bolsonaro e dizer assim: ‘eu estava envolvido, mas não era tão envolvido assim’. E num grau mais abrangente, no sentido de: ‘eu estava lá, mas eu não tenho nada a ver com isso, então me absolva'”.

No entanto, o professor não acredita na possibilidade de os réus serem absolvidos, apesar de concordar que a estratégia pode, de fato, influenciar a dosimetria da pena pelos ministros, que avaliarão a atuação específica de cada réu.

No caso de Heleno, por exemplo, apesar da defesa alegar esse distanciamento, durante uma reunião com Bolsonaro, o general defendeu que o governo “virasse a mesa” antes da eleição para garantir um segundo mandato do político. A gravação é de julho de 2022 e foi encontrada e apreendida pela Polícia Federal no computador do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o delator Mauro Cid.

“As provas são robustas. Então agora, quando as coisas estão se definindo, os réus irão tentar se salvar do jeito que der”, diz Crespo.

Por Portal Terra